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sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Sadomasoquismo não é doença

SADO

Finalmente, nossa cultura está chegando ao ponto de não considerar práticas sadomasoquistas como "doença" - como já foi a masturbação, que no tempo das nossas avós era vista como patologia. Eu, por exemplo, conquisto esse e outros espaços porque sou uma praticante de BDSM que está muito bem, obrigada. Tão bem que a minha saúde, autoestima e confiança no meu taco sadomasoquista me levaram a diversos programas de TV, revistas e rádio pra falar justamente sobre isso: a desmistificação - e a desmedicalização, digamos assim - do BDSM.
Antigamente, só de falar em BDSM você já era considerado pervertido ou louco. Hoje não. Deixando de lado os filtros da teoria médica/psicanalítica é possível ver que a estética sadomasoquista e fetichista foi assimilada pela cultura pop. O BDSM está na personagem que encarna a dominatrix para reconquistar o marido e na cantora popular que fala de feminismo. Em 2008 essa mudança de paradigma foi sedimentada por uma pesquisa séria, que ouviu mais de 20 mil pessoas. O levantamento foi feito por pesquisadores de saúde pública da Universidade de New South Wales, na Austrália. A conclusão é que os praticantes de BDSM tinham um histórico de atividades sexuais traumáticas igual ou menor ao dos não-praticantes.
Esse estudo revelou também que quem praticava BDSM não era nem mais nem menos propenso a ser infeliz ou ansioso do que qualquer pessoa considerada "normal". Outra pesquisa, de 2014, aponta o BDSM como um catalisador de bem estar, que - sendo praticado de forma segura e consensual - até aumentava a intimidade e cumplicidade dos casais. Portanto, fora do universo da ficção, não há registro oficial de alguém que tenha sido profundamente traumatizado e seja infeliz por ser praticante de BDSM. Não que não existam praticantes ruins da cabeça, pois gente louca existem em todos os lugares. Da Igreja à casa de swing.
Acho que sou uma prova viva dessa pesquisa, uma rata de laboratório vestida de latex. Essa foi e ainda é uma pratica muito transformadora na minha vida. Alguns já devem ter dado um google no meu nome e descoberto que eu sou Dominatrix. Vivo desse trabalho há mais de dez anos. Além de ser contratada pra exercer essa persona dominante, montar e dirigir uma cena sadomasoquista com outra pessoa - que assume o papel submisso - tenho uma longa pesquisa acerca desse tema, além de um livro contando o inicio da minha trajetória nessa profissão super difundida fora do Brasil.
Existe uma "comunidade" BDSM por aqui e conheci uma penca de pessoas nesse meio. Mas o legal é saber que existem muitos baunilha (é assim que os praticantes chamam os não praticantes) que se aproximam do universo BDSM mesmo sem saber. Conhecer suas experiências só foi possível porque resolvi me expor totalmente e assim virei referência para uma galera (além do público e dos súditos): amigos de infância, do colégio, ex-colegas de trabalho, o pessoal da faculdade. Todos sabiam da minha verve profissional exótica e vinham dividir comigo as suas aventuras - e desventuras - sexuais. Tenho uma amiga, por exemplo, que me contou a solução autodidata do seu problema com os homens: começou a mandar no namorado durante a transa. "Tudo bem leve, Domme", lembro que ela disse depois de passar a língua nos dentes e fazer aquele barulhinho, tipo um silvo meio cuspido. Aquele barulhinho me distraiu, mas lembro que ainda pensei "hum, o que será leve pra ela? Essa guria teve uma vida bem pesada, isso sim".
Vou satisfazer a sua curiosidade: a menina presenciava desde nova os abusos que a mãe sofria do ex-marido, pai dela. Resumindo a tragédia, parecia que a rua toda, cidade toda, o Estado inteiro, o Brasil inteiro sabia - e ouvia. Era uma saraivada de bofetadas diárias, gritaria, pedidos de socorro e o pior, o silêncio absoluto da vizinhança classe média baixa do final da Ditadura. Era triste ver as jovens famílias, que se instalavam no novo loteamento da cidade super tradicional que a gente cresceu, alternando entre o fuxico e o desdém. Mãe e a filha alvo de fofoca constante. Nunca eram chamadas para um chimarrão de final de tarde, quando todos colocavam as cadeiras nas calçadas.
Depois de muitos dentes quebrados, a mulher botou um fim no casamento e mandou o cara para rua. As coisas estavam começando a mudar para a voz feminina. Falar do assunto não era tabu na casa das duas. Era uma obrigação. Mãe e filha tinham uma diálogo aberto, ambas eram super engajadas nas causas feministas e a mãe estava sempre levando a guria para encontros de ajuda e psicólogos, "poupando a minha filha de que isso aconteça com ela". Claro que não era apenas a esposa a ser abusada. Devido à violência psicológica constante, minha amiga ficou bem avessa aos homens. Era mais do que esperado. Propositadamente, desenvolveu um comportamento super retraído e que parecia até submisso, no "intuito de encontrar caras parecidos comigo, gente que não faça muito barulho e não queira aparecer demais".
Passamos a conversar mais sobre o relacionamento dela e vi que as coisas "leves" estavam, na verdade, bem esquisitas. Além de mandar no namorado, fazia questão de humilhá-lo na frente da família do rapaz. Arranjava desculpas esfarrapadas a toda hora pra simular um término. Mantinha o cara numa situação psicológica precária, apesar de estar visivelmente apaixonada por ele. Ela não queria terminar o namoro, mas gostava de ver o moço sofrendo, implorando e prometendo mil coisas.
Durante o nosso papo, percebi que quanto mais eu falava de BDSM mais ela se entusiasmava "ai, preciso fazer isso!", e no final queria mesmo era um salvo conduto da Dominatrix para legitimar seu comportamento. Fui obrigada a interromper: "alto lá minha amiga, pára tudo, não é assim que você vai resolver o seu problema. Você está bem confusa. Práticas BDSM devem ser consensuais e fazer bem pro casal. Antes de adotá-las tente resolver de outra forma essa raiva acumulada que você quer descontar nele. Do contrário você vai passar do pólo abusado ao pólo abusador e a violência entra num ciclo sem fim. Não é da minha boca que você vai ouvir que isso é legal, tendência, moderninho, e que faz parte da sexualidade contemporânea a liberdade para fazer essas coisas!"
BDSM ali poderia péssimo. Só iria facilitar a canalização da libido numa atitude que replicava a violência paterna. Ainda bem que nem todo mundo cai nessa armadilha. E isso não sou eu quem diz, são as pesquisas científicas.
Em um artigo acadêmico sobre sexualidades alternativas, a psicóloga Peggy Kleinplatz, incluiu o estudo de caso de um casal cujas experiências BDSM ajudaram a lidar com abusos sofridos no passado. Mas, de acordo com a pesquisa australiana que mencionei (estudo que, por sinal, foi feito antes da onda 50 Tons de Cinza e do enaltecimento do pobre-menino-rico Sr. Grey), a maioria das pessoas não pratica BDSM porque foram abusadas ou são infelizes, estressados, ansiosos ou deprimidos. Os BDSMers têm exatamente o mesmo registro de infelicidade e felicidade que os não-praticantes. Infelicidade é para todos, tem outras causas e elas são particulares, não consequências da prática sadomasoquista.

Agora você vai pensar: mas e a experiência da sua amiga? Ela não procurou um médico, não era traumatizada? Sim, era. Mas o trauma não era fruto de nenhuma prática BDSM, mas de abusos na infância. Quando a gente conversou sobre BDSM ela descobriu que existiam algumas coisas no sadomasoquismo que envolvem humilhações e ordens, sentindo-se menos perdida e, de alguma forma, desculpada pelo que fazia.
Mas quando não existe consensualidade, é violência. Não é BDSM. Foi muito importante, na verdade, a intervenção de um praticante experiente para que ela prestasse atenção nas próprias intenções. Geralmente os BDSMers são os mais ligados -e beneficiados- em descobrir se existe algum tipo de violência ou abuso nas suas relações. Temos os sentidos treinados pra detectar qualquer tipo de mensagem ou atitude abusiva e fora de controle.
Mas nem tudo são flores. Apesar das pesquisas, da apropriação midiática do fetiche, das novelas com personagem sadomasô e dos 50 Tons de Cinza, muitos insistem em dizer que BDSM é o horror sobre a face da Terra. Já vi uma galera de alta classe e com todo acesso a informação fazer carinha de nojo. Isso me leva a questionar o entendimento dessas pessoas sobre o assunto. Já participei de programas de TV em que os âncoras, gente fina e educada, faz questão de reafirmar o tabu que cerca o BDSM, simulando surpresa, desconhecimento do assunto e até nojinho. Arram, sei. Eu mesma já atendi diversos clientes que são artistas, atores ou personalidades da mídia que gostam de BDSM pelo mesmo motivo que os levou a investir na carreira: a possibilidade de assumir diversos papéis num ambiente seguro e ser dirigido em cena por uma figura dominante.
Lembra que eu disse que masturbação também era considerado doença? Não acredito que você se acha doente porque bate uma ou que seu amigo gay precisa ser curado. A sexualidade é definida culturalmente. Segundo Winkler "quase toda configuração imaginável de prazer pode ser institucionalizada como convenção". Te parece libertador? Nem tanto. Fique esperto e analise quais interesses te movem para definir essas convenções e a quais grupos elas servem para definir o que é "normal". E você, o que pensa sobre isso? Se tiver qualquer assunto que gostaria de ver discutido, ou você ficou com vontade de ter mais informação sobre essa ou qualquer matéria sobre BDSM, por favor, não se acanhe. Não é sempre que você vai ver uma Dominatrix pedindo "por favor" hein?!

By Dommeniqe Luxor

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